O ato de consumir é inerente às sociedades, sejam elas humanas, animais ou vegetais[i], todos ingerem, digerem e excretam, afirma Escudero (2015), porém, a sociedade pós-moderna tornou o ato de consumir, como atividade de sobrevivência, em consumismo, quando a nossa capacidade de querer, desejar, ansiar e experimentar, repetidas vezes sem fim, passa a sustentar a economia. Ainda de acordo com Escudero, a evolução da economia capitalista impulsiona a produção e reprodução com o intuito de ampliar constante e consistentemente este mercado consumidor, o que é insustentável.
Escudero (2015) afirma: “A latente queda na qualidade dos objetos produzidos, que concede à indústria movimentação constante de reposição, é uma das formas de manter a máquina aquecida, porém, o crescimento exacerbado do consumo só aconteceu quando a classe proletária (trabalhadores) foi incluída como público-alvo para consumo neste sistema”, no caso do Brasil, esse movimento acelerou-se a partir do início da década de 1990.
Este movimento de substituição é chamado de obsolescência programada e é uma decisão do fabricante de fabricar, distribuir e vender produtos que apresentam problemas de funcionamento em um tempo menor do que poderiam, impulsionando a recompra. A obsolescência pode ocorrer por quebra, falta de peças de reposição, novas tecnologias que suplantam a anterior ou novo design. Essa economia faz do consumo a nossa forma de vida e, junto com ele, uma forma de satisfazer nossas necessidades, incluindo o vazio interior fruto da desconstrução do indivíduo a partir de meados do século XX. Consumidor marcas, produtos e serviços e, a partir desta atividade, nos envolvermos em projeções imaginárias de satisfação e felicidade. Nada disso é novidade e está imbricado em nosso cotidiano.
Vejamos algumas informações:
Em página do Huffington Post[ii], Alexandre Andradas, da Universidade de Brasília cita que “entre 1948 e 1981 o Brasil foi um dos países que mais cresceu no mundo, a uma média superior a 7% a.a., o que significava que o tamanho da economia brasileira dobrava a cada 10 anos (…) esse crescimento se refletiu na mudança no PIB per capita, o qual saiu de um valor de pouco mais de US$ 2 mil para US$ 8.3 mil no período”. Em maio de 2017, Alves[iii] (2017) demonstra em seu artigo o crescimento do PIB, da população brasileira e da renda per capita, sendo que, em 2018 a renda domiciliar per capita brasileiro ficou em R$ 1.373,00[iv] ou o equivalente a, aproximadamente, US$ 372,00. Estamos com renda maior, mas, porque nosso poder de compra não segue na mesma medida?
Isto é pouco ou muito? Bem, uma geladeira do tipo frostfree custa hoje cerca de R$ 1.329,05[v] (US$ 351,00) no Brasil e tem durabilidade estimada[vi] em 13 anos. Oliveira (2015)[vii], com base em dados do IDEC Instituto de Defesa do Consumidor, dados de 2014, fala de uma vida útil de 6 anos, e cita:
A obsolescência programada é um tema de muito debate entre a sociedade, visto que há uma impressão crescente de que os produtos vêm durando cada vez menos. E isto não é um fato isolado. A partir do século XX a indústria veio se modernizando e produzindo produtos que são programados para durarem um período de tempo determinado. Os produtos que anteriormente eram projetados para durarem o máximo de tempo possível foram reprojetados para durarem menos após a Crise Econômica de 1929. (Garcia apud Oliveira, 2015)
Oliveira (2015) apresenta como resultado de sua pesquisa de campo a percepção dos consumidores com relação à queda da qualidade dos produtos ofertados no segmento e a sua baixa durabilidade. Além desta questão, o custo de manutenção também é considerado alto e o consumidor acha preferível comprar um produto novo a investir na manutenção de algum produto que tenha dado problema técnico. O consumidor acredita que não vale a pena consertar, 80% dos consumidores entrevistados no estudo compraria um produto novo caso o atual apresentasse problemas de funcionamento.
Outro aspecto importante a ser discutido é a pressão por custos baixos versus rentabilidade. Para atender à necessidade de manutenção do preço de vendas, assistimos a consistente redução de peso, tamanho ou quantidade de produtos nas embalagens regularmente vendidas. Na década de 1980, as embalagens padrão de absorventes vinham com 10 unidades, hoje são 08 unidades. Uma barra de chocolate padrão vem hoje com cerca de 100 a 110g, em 1980 eram cerca de 200g. Podemos observar também a queda na espessura de bolachas e biscoitos, recheados, do tipo cream cracker ou maizena.
Um artigo de 2014[viii] trata de uma redução que varia de 7 a 20% na quantidade ou volume de produto vendido, sem a correspondente redução de preços. No artigo, a embalagem do produto Snowflakes reduziu de 330 para 300g, do leite Molico, por exemplo, houve uma redução de 300 para 280g. Como consumidores, somos afrontados com as mudanças de quantidade, facilmente identificadas, mas e a mudança na qualidade dos produtos consumidos? Qualquer dona de casa pode identificar que os produtos não apresentam a mesma qualidade, o café, por exemplo, hoje utiliza-se uma quantidade maior de pó para obter a mesma qualidade daquele nosso cafezinho cotidiano.
Outro fenômeno correlato é a gourmetização dos produtos. Lourenço (2016)[ix] cita a gourmetização como o fenômeno de criar uma versão luxuosa e diferenciada de um produto ou serviço já existente, cobrando um preço bastante superior para isso. Em outro artigo, Orsi[x] (2017), citando o trabalho do pesquisador Valter Palmieri Júnior, explica que a gourmetização tomou impulso a partir de 2003 e cita, nas palavras de Palmieri:
A grande indústria brasileira de alimentos tem a marca de produzir produtos de baixa qualidade: há um excesso de açúcar em vários doces industrializados, por exemplo, porque açúcar é um insumo barato. Aí você melhora um pouco só o produto, põe um pouquinho mais de cacau no chocolate, mas trata isso como se fosse um produto muitíssimo superior. E coloca um preço três vezes maior. A diferença de preço supera bastante a diferença de custo (…) A tendência do mercado brasileiro de alimentos industrializados para a gourmetização ganhou impulso a partir de 2003, observa o pesquisador. Principalmente entre 2004 e 2008, houve uma ampliação da renda, uma maior criação de empregos, com políticas de transferência de renda: num gasto do Bolsa Família de R$ 12 bilhões, quase 90% disso vira alimento. Houve ainda a valorização do salário mínimo, maior estruturação do mercado de trabalho, ampliação do crédito para o consumo, todos elementos importantes para iniciar esse processo de maior intensidade na diferenciação de produtos e preços, comenta.
Porque o produto gourmet, seja chocolate ou café, molho ou macarrão, parecem ser tão mais saborosos do que aquilo que consumimos regularmente? Simplesmente porque são feitos com ingredientes de melhor qualidade, em menor quantidade, ou seja, quem tem condições financeiras de adquirir produtos gourmet, produtos orgânicos, produtos de melhor procedência, se beneficia de um produto com mais qualidade e sabor.
Claro que há uma complexidade neste processo que não é possível explorar no espaço de um artigo, mas o ponto que ressaltamos é que efetivamente, comprovadamente, a qualidade tem sido inversamente proporcional à quantidade e, como consumidores, aceitamos isso como parte inerente do jogo.
Quer outro exemplo: A educação superior no Brasil. Serpa e Costa Pinto[xi] (2000) informam que, de 1984 a 1995, a evasão com relação ao número de ingressantes no ensino superior era de 34,86%. Em 2017[xii], a evasão nas instituições privadas chegava a 53% contra 47% nas públicas. As instituições privadas de ensino superior tinham uma participação de 75% em 2017[xiii], ou seja, 75% dos alunos matriculados no ensino superior, ou três de cada quatro estudantes, estavam em instituições privadas.
Um dos motivos das altas taxas de evasão é a estagnação do método de ensino, além de outras de caráter pessoal, financeiro, etc. Outro fator significativo é a baixa qualidade do ensino médio, que leva os alunos ao ensino superior com deficiências básicas em português e matemática, desestimulando o aluno porque não consegue acompanhar o conteúdo proposto no ensino superior. Em virtude disso, o ensino superior tem reduzido a qualidade ou “baixado o nível” para conseguir manter os alunos estudando e reduzir sua taxa de abandono.
O que significa “baixar o nível”? Alguns pontos têm sido extensivamente praticados pelas instituições de ensino, com a anuência do MEC: a redução da carga horária de quatro para três horas aula por período; o semestre letivo muito menor, agora em 2019 as instituições iniciaram as aulas por volta de 11 ou 18 de fevereiro e, com o feriadão do carnaval, haverá aproximadamente dois meses e meio de aula; A adoção de livros texto, ou seja, uma bibliografia mínima, reduzida a uma obra subsidiada pela instituição; Ampliação da carga de disciplinas à distância; Inclusão de oficinas dentro da carga horária semanal, eliminando uma noite de aula;
Claro que quantidade não tem uma correlação exata com qualidade, mas outro fenômeno recorrente nos últimos anos, em virtude da pressão por custos, tem sido a demissão em massa de docentes experientes e sua substituição por professores recém-formados, sem experiência em sala de aula, por um valor salarial que chega a ser três ou quatro vezes menor sem, é claro, a correspondente redução no preço da mensalidade paga pelos alunos.
A falácia das metodologias ativas é outro aspecto. Carvalho (2019) observa em seu blog Além das fórmulas[xiv]:
Como consumidores e cidadãos, estamos sempre nos acostumando com menos, cada vez menos, e as indústrias vão empurrando suas porcarias, que aceitamos de bom grado. Pense na queda de qualidade dos locais onde você costuma ir jantar, na qualidade das salas de cinema travestidas de XD e outros subterfúgios mais.
A lógica do mercado vigente tem mostrado, há muito, sinais de extremo desgaste em diversos aspectos. Será que a produção em massa é mesmo a solução para o maior equilíbrio no estilo de vida das pessoas? A experiência diz que não, já que tem ampliado a distância entre ricos e pobres e favorecido a intensa concentração de renda em todo o mundo. Mas não cabe aqui aprofundar esta discussão.
Queremos apenas salientar a oportunidade de mercado que se apresenta para aquelas empresas que realmente tenham a intensão de exercer sua responsabilidade social de forma séria, que tenham ética, que exerçam sua cidadania e, sobretudo, que entendam que exercer seu negócio é uma concessão pelas pessoas. Que entendam que quem deve estar a serviço da sociedade são elas, e não ao contrário.
Mas acho que isso já é sonhar demais, ainda!
[i] Escudero, Andréia P. O fenômeno da adultescência: a imagem do adolescente eterno nos meios de comunicação. São Paulo: Todas as musas, 2015.
[ii] Andrada, Alexandre. Disponível em https://www.huffpostbrasil.com/alexandre-andrada/uma-breve-historia-da-economia-brasileira-1948-2018_a_21686394/ acesso em março, 2019.
[iii] Alves, José Eustáquio D. População e economia nos 200 anos da Independência do Brasil: 1822-2022. Artigo de José Eustáquio Diniz Alves. Disponível em http://www.ufjf.br/ladem/2017/05/05/populacao-e-economia-nos-200-anos-da-independencia-do-brasil-1822-2022-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/ acesso em março de 2019.
[iv] Disponível em https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/02/27/renda-domiciliar-per-capita-no-brasil-foi-de-r-1373-em-2018-mostra-ibge.ghtml
[v] Preço Casas Bahia em 04.março. 2019 para Refrigerador Consul FrostFree
[vi] O conteúdo do EcoDesenvolvimento.org está sob Licença Creative Commons. Para o uso dessas informações é preciso citar a fonte e o link ativo do Portal EcoD. http://www.ecodesenvolvimento.org/noticias/estudo-revela-o-tempo-de-funcionamento-de-eletrodomesticos#ixzz5hFIuD9K5
Estudo revela o tempo de funcionamento de eletrodomésticos. Disponível em http://www.ecodesenvolvimento.org/noticias/estudo-revela-o-tempo-de-funcionamento-de-eletrodomesticos
[vii] Oliveira, Mariana P. Obsolescência programada de eletrodomésticos da linha branca na visão dos stakeholders. Disponível em https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/29498/29498.PDF acesso em março de 2019
[viii] Lajes News. Indústria diminui o peso de alimentos, mas mantém preços
Disponível em http://lajesnewsrn.blogspot.com/2014/08/industria-diminui-o-peso-de-alimentos.html
[ix] Lourenço, Emília U. O fenômeno da gourmetização. Trabalho de conclusão de curso. Universidade de Brasília. Disponível em http://bdm.unb.br/bitstream/10483/15152/1/2016_EmiliaUemaLourenco_tcc.pdf acesso em março de 2019.
[x] Orsi, Carlos. ‘Gourmetização’ na indústria de alimentos é simbólica das diferenças sociais. Disponivel em https://www.unicamp.br/unicamp/ju/noticias/2017/04/27/gourmetizacao-na-industria-de-alimentos-e-simbolica-das-diferencas-sociais
[xi] Serpa, Luis Felipe P. Costa Pinto, Nice Maria A. A evasão no ensino superior no Brasil. Disponível em http://publicacoes.fcc.org.br/ojs/index.php/eae/article/download/2226/2184
[xii] Evasão no ensino superior, o que ainda falta fazer. Disponível em http://portal.estacio.br/painel/evas%C3%A3o-no-ensino-superior-o-que-ainda-falta-fazer/
[xiii] Censo da Educação Superior, MEC. Disponível em http://portal.mec.gov.br/docman/setembro-2018-pdf/97041-apresentac-a-o-censo-superior-u-ltimo/file
[xiv] Carvalho, Tina. Disponível em http://www.alemdasformulas.com/2019/03/a-tecnologia-na-educacao-e-uma-cortina.html